Barbárie nunca mais: hora de salgar as feridas, e não de acochambrar – artigo de Mário Magalhães

Confira o artigo do Jornalista Mário Magalhães sobre o relatório da Comissão Nacional da Verdade, originalmente publicado em seu blog, na UOL.

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Sim, porque as chagas estão expostas, como sabe quem não se faz de cego e desdenha da dor alheia.

Que ferida cicatrizou, para as velhinhas que até o último suspiro vão sonhar em sepultar dignamente o filho desaparecido sob custódia do Estado?

Ou para os rebentos que esperaram a mãe e o pai regressarem à casa e nunca mais os viram, receberam seu afago e ouviram o carinho de um “boa noite, meu filho”?

O relatório derradeiro da Comissão Nacional da Verdade só será instrumento de reconciliação da brava gente brasileira se for interpretado como ultimato para as atuais e futuras gerações: quem violar os direitos humanos, castigando o povo com covardia e brutalidade, há de ser punido.

Como são _e merecem mesmo ser_ ainda hoje os criminosos nazistas, os torturadores argentinos, os genocidas combojanos, os açougueiros sérvios. Os que trucidaram seus compatriotas e barbarizaram além fronteiras.

A Justiça precisa castigar quem torturou, matou e sumiu com corpos de oposicionistas, sobretudo na longa jornada sombria inaugurada com o golpe de Estado de 1964.

Nunca é tarde para fazer justiça.

A impunidade para os bandidos de uniforme daquela época incentiva os agentes públicos a maltratarem os pobres e desgraçados de hoje.

Crime sem castigo é passaporte para eternizar a covardia.

Na forma, cavucamos o passado. No conteúdo, decidimos que futuro semeamos.

O algoz dos escravos no pelourinho é o padrinho do torturador dos séculos 20 e 21.

Os militares e policiais que desapareceram com o corpo do guerrilheiro Virgílio Gomes da Silva, assassinado na tortura em 1969, inspiraram os facínoras que sumiram com o pedreiro Amarildo em 2013.

As atrocidades descritas pela Comissão Nacional da Verdade nesta quarta-feira 10 de dezembro de 2014 _ainda não li o relatório_ não podem, não devem e não serão ponto final de nada.

Mas dois pontos, anunciando batalhas sem fim respingadas pelo sangue dos mortos, pelo suor de quem não se entrega e pela consciência de quem peleia pela civilização, contra a barbárie.

Com qualquer forma jurídica, é indispensável julgar os criminosos da ditadura. Eles estão vivos às pencas. Até outro dia, um desses matadores pagos com dinheiro do contribuinte contava vantagem ao dizer que ele e seus parceiros cortavam os dedos das mãos, arrancavam a arcada dentária e extirpavam as vísceras de presos políticos, antes de jogar os cadáveres em rio onde jamais viriam a ser achados.

Reparem bem: os discursos mais radicais e aparentemente incendiários, em torno das conclusões das comissões da verdade, serão um engodo histórico se não exigirem o fim da impunidade. Crimes contra os direitos humanos são imprescritíveis. A ditadura não tinha o direito de se auto-anistiar em 1979, como sabe qualquer cidadão honesto e democrata convicto. Os oposicionistas já foram julgados, punidos e perseguidos _muitos deram a vida lutando pela liberdade.

Como ignorar _não punir, no balanço sincero da história, é ignorar_ quem torturou uma presa notoriamente grávida? Criança, o filho se perturbava com o barulho de chaves. Era a lembrança de quando abriam a cela para levarem a mãe _e ele, na barriga_ às sessões de eletrochoque.

E quem motivou dois irmãos menores de dez anos a dormirem amarrados ao berço da irmã bebê, para acordar caso os agentes da ditadura a carregassem embora? Os garotos iriam brigar, pois a coragem estava no sangue e, o amor, no coração.

E os que levaram meninos aos pais, cuja voz reconheceram, mas não o rosto, deformado pela violência despudorada dos torturadores?

E os estupradores das jovens que generosamente dispensaram o conforto dos lares de classe média pensando em ajudar os miseráveis do Brasil?

E quem empalou e executou, em instalações públicas, homens e mulheres sem condições de se defender?

E os ao menos 29 tiras que fuzilaram um guerrilheiro que não portava nem um canivete?

Stuart Angel poderia ser nosso irmão. Zuzu Angel, nossa mãe.

Na parede da memória, como diria o Belchior, esses são os quadros que doem mais.

O Brasil é um dos dez países mais desiguais do planeta porque sempre acochambrou as injustiças.

Nesta terra se mata como em poucas, pois falta a vacina da punição.

As feridas estão aí, é preciso salgá-las, viver a dor, para que enfim, com o amparo de mais uma viagem às trevas da história, os criminosos da ditadura sejam punidos.

Chega de ditadura, chega de covardia.

Nunca mais!

Mário Magalhães nasceu no Rio em 1964. Formou-se em jornalismo na UFRJ. Trabalhou nos jornais “Folha de S. Paulo”, “O Estado de S. Paulo”, “O Globo” e “Tribuna da Imprensa”. Recebeu mais de 20 prêmios. É autor da biografia “Marighella – O guerrilheiro que incendiou o mundo”.