Sugestão de leitura: Cultura e Socialismo, de Leon Trotski

Relançamos aqui esta cartilha que não constava da nossa relação disponível no site. O texto de Leon Trotski, dirigente da Revolução Russa, foi publicado pela primeira vez em 1926.  Para reprodução nos núcleos, sugerimos a venda no preço de R$ 3,00. A reprodução  é  livre.

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Cultura e Socialismo – Leon Trotski

Recordemos agora tudo o que cultura significou: originariamente, campo arado e cultivado, diferente da floresta e solo virgens, A cultura se compunha à natureza, isto é, o que era conquistado pela força do homem só contrapunha ao que era dado pela natureza. Esta antítese conserva ainda seu valor substancial.

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Cultura é aquilo que foi criado, construído, apreendido, conquistado pelo homem no curso de toda a sua História, em contraposição ao que a natureza lhe deu, compreendida aí a história natural do homem como espécie animal. A ciência que estuda o homem como produto da evolução animal é a antropologia (física), Mas no momento em ‘que o homem se separou do reino animal – e isto aconteceu quando segurou pela primeira vez os instrumentos primitivos de pedra e de madeira – naquele momento começou a criação e acumulação de cultura, isto é, do conhecimento e da capacidade de todos os tipos para enfrentar e subjugar a natureza.


Quando falamos da cultura acumulada, das gerações passadas, pensamos logo e sobretudo nas primeiras realizações materiais sob a forma de instrumentos, máquinas, construções, monumentos e assim por diante. É isto a cultura? Sem dúvida, trata-se das formas materiais nas quais a cultura é colocada, da cultura materializada. Esta cultura cria, com bases na natureza, o pano de fundo da nossa vida, do nosso modo de viver cotidiano, do nosso trabalho criativo.

Mas a parte mais preciosa da cultura é aquela que se deposita na consciência do próprio homem: o método, os costumes, a capacidade, a habilidade que adquirimos e que se desenvolveu partindo de toda a cultura material pré existente e que, embora se prendendo a ela, faz com que progrida de acordo com a época. Consideramos pois, como fundamento, que a cultura se desenvolveu graças à luta do homem contra a natureza, pela sua existência, pela melhoria de suas condições de vida. Mas partindo desse mesmo princípio também se desenvolveram as classes. No processo e adaptação à natureza, em conflito com as forças hostis, a sociedade humana vem-se delineando como uma complexa organização de classes. A estrutura classista da sociedade determinou, na medida decisiva, o conteúdo e a forma da história humana, isto é, as relações materiais e seus reflexos ideológicos. Isto significa que a cultura histórica assumiu um caráter de classe.

A sociedade dos proprietários de escravos, a sociedade feudal dos proprietários de servos, a sociedade capitalista, produziram cada uma delas uma cultura correspondente, diferente nas diversas fases e com uma multiplicidade de formas transitórias. Uma sociedade de exploradores originou uma cultura de exploradores. Mas isto significa que somos contra toda a cultura do passado?

Aqui existe efetivamente uma profunda contradição. Tudo aquilo que foi conquistado, criado, construído pelo esforço do homem e que serve para aumentar seu poder, é cultura. Mas como não se trata do homem considerado individualmente, mas do homem considerado socialmente, como a cultura é um fenômeno sócio-histórico pela sua natureza, e como a sociedade histórica tem sido e continua a ser uma sociedade de classes, a cultura acabou se tornando o instrumento fundamental da opressão de classes. Marx dizia: “As idéias dominantes numa determinada época são essencialmente as idéias de classe dominante daquela época”. Isto também vale para a cultura no seu conjunto. Contudo, dizemos à classe operária: Apropriem-se de toda a cultura do passado, de outra maneira não construirão o socialismo. Qual é a explicação?

Muitos tropeçam nesta contradição e aqui nos encontramos diante de um obstáculo, porque temos uma compreensão superficial, semi-idealista, da sociedade de classes, e esquecemos que o fundamental é a organização da produção. Cada sociedade de classes forma-se sobre a base de normas bem definidas de luta contra a natureza,
e estas normas são modificadas em relação ao desenvolvimento da técnica. Qual é a base das bases: a organização de classe da sociedade ou a sua força produtiva? Sem dúvida, a força produtiva. Sobre esta base, num certo nível de seu desenvolvimento, formam-se e reformam-se as classes. Nas forças produtivas expressa-se materialmente a habilidade econômica da humanidade sua capacidade de assegurar a própria existência. Esta dinâmica fundamenta as classes que, nas suas relações recíprocas, determinam o caráter da cultura.

E neste ponto devemos, antes de tudo e sobretudo, perguntar a propósito da técnica: é apenas um instrumento de opressão de classe? Basta colocar a pergunta para ter logo a resposta: não, a técnica é a conquista fundamental da humanidade: embora tenha servido como instrumento de exploração é, ao mesmo tempo, condição essencial para a emancipação do explorado. A máquina sufoca o escravo assalariado. Mas este somente pode libertar-se através da máquina. Aqui está a raiz de toda a questão.

Se não esquecermos que a força motriz do processo histórico são as forças produtivas que liberam o homem do domínio da natureza, então compreenderemos que o proletariado necessita apoderar-se de toda a soma de conhecimento e da capacidade elaborada pela humanidade no curso de sua história, para poder emancipar-se e reconstruir a vida sobre a base dos princípios de solidariedade.

“É a cultura que faz progredir a técnica ou é a técnica que faz a cultura progredir?” Isto me foi perguntado num dos debates do qual participei anteriormente. É errado colocar a questão desta maneira. A técnica não pode ser contraposta à cultura, porque é a mola principal. Sem técnica não há cultura. O desenvolvimento da técnica faz a cultura progredir. Mas a ciência e a cultura em geral constituem os fundamentos da técnica e ajuda poderosa para seu desenvolvimento posterior. Aqui temos uma interdependência dialética.

Camarada, se queres um exemplo simples mas significativo da contradição inserida na própria técnica, o melhor é aquele das ferrovias. Se deres uma olhada nos trens de passageiros da Europa Ocidental, verás que há vagões de “classes” diversas. Estas classes lembram as classes da sociedade capitalista. Os vagões de primeira classe são para as camadas superiores privilegiadas; os de segunda, para a média burguesia; os da terceira, para a pequena burguesia; e os de Quarta, para o proletariado que no passado era definido como o Quarto Estado. De per si, os trens são uma conquista grandiosa técnico-cultural da humanidade, que transformou enormemente a face da terra no curso de um só século. Mas a estrutura de classe da sociedade influencia também a estrutura dos meios de comunicação. E as nossas ferrovias soviéticas estão ainda bem distantes da igualdade – não porque usam os vagões herdados do passado – mas ainda porque a N.E.P. apenas cria as condições de igualdade sem poder realizá-la.

Antes da era das ferrovias, a civilização restringia-se ao litoral ou à margem dos grandes rios. As ferrovias abriram continentes inteiros à cultura capitalista. Uma das causas fundamentais, senão a principal, do atraso e da desolação do nosso campo russo é a falta de ferrovias, de estradas asfaltadas e de estradas secundárias. Deste ponto de vista a maior parte de nossos vilarejos vivem em condições pré capitalistas. Devemos vencer: nosso grande aliado que é, ao mesmo tempo, nosso maior adversário: o grande espaço. A economia socialista é uma economia planificada. A planificação pressupõe antes de mais nada as comunicações. Os meios mais importantes de comunicação são as rodovias e ferrovias. Cada nova linha ferroviária é um caminho para a cultura e, na nossa situação, é também um caminho para o socialismo. Com o aperfeiçoamento da técnica das comunicações e com a prosperidade do país, as características sociais dos nossos trens também mudarão: a divisão em “classes” desaparecerá, viajaremos todos em vagões de bom molejo… se, nesse momento, as pessoas ainda viajarem de trem e não preferirem servir-se de meios aéreos, que são acessíveis a todos.

Tomemos um outro exemplo, aquele dos instrumentos militares, dos meios de extermínio. Neste campo a natureza de classe da sociedade se exprime de maneira particularmente clara e revoltante. Mas não existe substância destrutiva (explosiva ou venenosa) cuja descoberta não é em si mesma uma inestimável conquista científica e técnica. As substâncias explosivas e venenosas podem ser usadas também com objetivos criativos e não só para fins de destruição, e abrem novas possibilidades no campo das descobertas e invenções. O proletariado pode conquistar o poder somente que brando o velho aparelho do Estado de classe. Assumimos esta tarefa com uma resolução nunca vista. Mas, ao construir a nova máquina estatal, compreendemos que, numa medida realmente considerável, deveríamos usar elementos da antiga. A posterior reconstrução socialista da máquina estatal está ligada indissoluvelmente à nossa atividade política, econômica e cultural em geral. Não devemos destruir a técnica. O proletariado apoderou-se das fábricas aparelhadas pela burguesia nas condições em que a revolução as encontrou.

Os antigos equipamentos servem até hoje. Este fato demonstra de maneira mais eloqüente e direta, que não renunciamos à “herança”. Como poderia ser de outra maneira? Entre outras coisas, a revolução foi empreendida sobretudo para se apossar da “herança”. Mas a antiga técnica, na forma como a conquistamos, é totalmente inadaptada ao socialismo. É uma cristalização da anarquia de economia capitalista. A concorrência provoca a diversificação do comércio com o objetivo de lucro, o desenvolvimento desigual dos diversos setores da economia, o parcelamento da agricultura, a exploração da energia humana, tudo isso, na técnica, se exprime em ferro e bronze. Mas, enquanto a máquina da opressão de classe pode ser quebrada por um golpe revolucionário, a máquina produtiva da anarquia capitalista pode ser reconstruída apenas gradualmente. O encerramento da fase de restauração, com base nos antigos equipamentos, levou-nos apenas ao início dessa terrível tarefa. Devemos absorvê-Ia a todo custo.

A cultura espiritual é contraditória como a cultura material. E como dos resíduos e arsenais da cultura material aprendemos e colocamos em circulação não arcos e flechas, nem instrumentos de pedra ou da idade do bronze, mas os instrumentos mais aperfeiçoados que podíamos ter, fruto da técnica mais atualizada, do mesmo modo devemos confrontar-nos com a cultura espiritual.

O elemento fundamental da cultura da antiga sociedade era a religião. Tinha uma enorme importância como forma de conhecimento e unidade humana: mas desta forma refletia acima de tudo a debilidade do homem face à natureza e à sua impotência na sociedade. Rejeitamos completamente a religião, com todas as suas alternativas.
As coisas são diferentes no que se refere à filosofia. Devemos apreender da filosofia criada pela sociedade de classes dois elementos inestimáveis: o materialismo e a dialética. Na realidade, da combinação do materialismo com a dialética nasceu o método de Marx, que deu origem a seu sistema. Este método é a base do leninismo.

Se passarmos para a ciência strictu sensu, é para nós absolutamente óbvio que nos encontramos diante de imensa reserva de conhecimentos e de capacidade acumulada pela humanidade no curso de sua longa existência. Bem, pode-se demonstrar que na ciência, cujo objetivo é o conhecimento da realidade, são muito tendenciosas as adulterações de classe. É exatamente assim. Se a ferrovia também exprime a condição do privilégio de uns e a pobreza de outros, isso vale ainda mais para a ciência, cujo objeto é muito mais flexível que o metal e a madeira com que se fazem os vagões ferroviários. Mas devemos ter em conta o fato de que o trabalho científico é fundamentalmente alimentado pela exigência de adquirir o conhecimento da natureza. Embora os interesses de classe introduzissem e ainda estejam introduzindo tendências errôneas nas ciências naturais, o processo de falsificação está, todavia, contido nos limites além dos quais começa a dificultar diretamente o progresso da tecnologia. Se considerarmos as ciências naturais do começo ao fim, do campo de acumulações dos fatos elementares até as generalizações mais elevadas e complexas, veremos que quanto mais um aspecto da pesquisa científica é empírico, quanto mais se aproxima do conteúdo material, dos fatos, tanto mais indiscutíveis são os resultados que fornece. Quanto mais amplo é o campo da generalização, quanto mais as ciências naturais se aproximam dos problemas filosóficos, tanto mais estão sujeitas à influência das aspirações de classe. As coisas são mais complexas e negativas no campo das ciências sociais e daquilo que se definiu corno a ciência “humanística”. Sem dúvida também nesta esfera o elemento fundamental é a tendência para adquirir o conhecimento daquilo que existe. Graças a isto, diga-se de passagem, conseguimos a brilhante escola dos economistas clássicos. Mas os interesses de classe, que nas ciências sociais se expressam muito mais direta e imperiosamente do que nas ciências naturais, bem cedo exigiam o desenvolvimento do pensamento econômico da sociedade burguesa. Neste campo, entretanto, nós comunistas estamos melhor preparados do que em qualquer outro. As teorias socialistas, despertadas pela luta de classe do proletariado, sobre a base da ciência burguesa e da crítica a esta ciência, aprenderam comos ensinamentos de Marx e Engels o poderoso método do materialismo histórico e sua incompatível aplicação em O Capital. Isto não significa obviamente que estamos garantidos contra a influência das idéias burguesas no terreno da economia e da sociologia em geral. Não, as mais vulgares tendências profissionais socialistas e pequeno-burguesas populistas entram em circulação entre nós saindo da velha “câmara de segurança” da consciência e encontrando alimento nas relações não bem definidas e contraditórias da época de transição. Mas neste campo podemos valer-nos dos critérios indispensáveis do marxismo, analisado e enriquecido na obra de Lenin. E tanto mais saberemos refutar vitoriosamente os economistas e sociólogos vulgares, quanto menos nos fecharmos na experiência do passado e quanto mais reconhecermos amplamente o desenvolvimento mundial no seu conjunto, distinguindo suas tendências essenciais das mutações simplesmente conjunturais. Nas questões referentes à lei, à moralidade e à ideologia em geral, as condições da ciência burguesa são ainda mais lamentáveis que no campo econômico. Uma pérola de genuíno conhecimento só pode ser encontrada nestes campos depois de se ter revolvido dúzias de profissionais incompetentes.

A dialética e o materialismo são os elementos fundamentais do conhecimento marxista do mundo. Mas isto não significa de fato que possam ser aplicados a qualquer esfera do conhecimento como urna chave que abre todas as portas. A dialética não pode ser imposta aos fatos, deve ser deduzida dos falos, da sua natureza do seu desenvolvimento. Apenas um trabalho minucioso sobre enorme massa de dados permitiu a Marx fazer progredir o sistema dialético da economia até a concepção do valor como trabalho social. A obra histórica de Marx foi construída do mesmo modo e assim também seus artigos de jornais. A depuração da ciência burguesa pressupõe conhecimento da ciência burguesa. Nada será obtido com urna crítica sumária e com bruscas intimações. Aprender e aplicar são condições para urna reelaboração crítica. Temos o método, mas isso não basta para proceder a generalizações. A crítica marxista na ciência deve ser não apenas vigilante, mas também prudente: de outro modo pode degenerar em sicofantismo, em famusovismo1. Tomemos como exemplo a psicologia. A concepção pavloviana de reflexos desenvolve-se na linha do materialismo dialético. Abate de modo decisivo o muro entre a filosofia e a psicologia. O mais simples reflexo é Famusov, personagem de teatro, pequeno-burguês pedante, imbuído fisiológico, mas o sistema de reflexos resultará na “consciência”. A acumulação da quantidade fisiológica resulta numa nova qualidade, a qualidade “psicológica”.

O método da escola de Pavlov é experimental e minucioso. A generalização é conquistada passo a passo: desde a saliva do cachorro até a poesia (isto é, os mecanismos mentais da poesia e não o seu conteúdo social), se bem que os caminhos até a poesia não foram ainda revelados. A escola do psicanalista vienense Freud procede de modo diverso: pressupõe, como ponto de partida, que a força motriz dos processos psíquicos mais complexos e delicados é a necessidade fisiológica. Neste sentido geral é materialista, se deixarmos de lado a questão de saber se ela não dá um peso excessivo ao fator sexual em detrimento de outros (mas ai, já é um debate confinado ao quadro do materialismo). Portanto, o psicanalista não aborda o problema da consciência experimentalmente, desde os fenômenos primários até os mais elevados, desde o simples reflexo até os reflexos mais complexos; mas esforça-se para superar todos os estágios intermediários com um só salto, de alto a baixo, do mito religioso, da poesia lírica ou do sonho, diretamente nas bases fisiológicas da psique.

Os idealistas ensinam que a psique é uma entidade independente, que a “alma” é um poço sem fundo. Pavlov e Freud, ao contrário, consideram que o fundo da “alma” constituído pela fisiologia. Mas enquanto Pavlov, como um escafandrista, desce ao fundo e explora o poço minuciosamente, de baixo até o alto, Freud fica sobre o poço e com um olhar agudo busca devassar a água suja e revolta, esforça-se para discernir e decifrar as coisas mais abaixo. O método de Pavlov é a experimentação. O método de Freud é a conjectura, algumas vezes fantásticas conjecturas. A tentativa de declarar a psicanálise “incompatível” com o marxismo e virar as costas, sem cerimônia, ao freudismo, é muito simplista, ou melhor, “simplória”. Em nenhum caso estamos obrigados a adotar o freudismo. É uma hipótese de trabalho que pode resultar -e que incontestavelmente resulta em hipóteses e conjeturas que se inscrevem na linha da psicologia materialista. O processo experimental no devido tempo verificará estas conjecturas. Mas não temos nenhum motivo e nenhum direito de colocar de lado um outro procedimento que, ainda que pareça menos válido, se esforça para antecipar as conclusões para as quais a via experimental está avançando muito lentamente2. Com a ajuda desses exemplos, queria demonstrar, pelo menos parcialmente, a heterogeneidade da nossa herança científica e complexidade dos modos pelos quais o proletariado pode progredir no domínio dessa herança. Se na edificação econômica os problemas não podem ser resolvidos por decreto e devemos “aprender a comerciar”, também na ciência o simples recurso a secas intimações não pode senão provocar graves prejuízos. Neste campo é precioso “aprender a aprender”. A arte é um dos modos com que os homens se orientam no mundo: neste sentido, a herança da arte não se distingue da ciência e da técnica – e não é menos contraditória. Diferente da ciência, todavia, a arte é uma forma de conhecimento do mundo, não como um conjunto de leis, mas como um conjunto de imagens, e ao mesmo tempo em modo de inspirar certos sentimentos e estados de ânimo, A arte do século passado tomou o homem muito mais complexo e maleável, elevou sua mentalidade a um nível mais alto e enriqueceu-o em todos os sentidos. Este enriquecimento é uma conquista preciosa da cultura. O domínio da arte do passado é, então, condição necessária não só para criação da nova arte, mas também para a construção de uma nova sociedade, uma vez que há necessidade de pessoas com uma inteligência altamente desenvolvida. Mas como pode a arte do passado enriquecer um conhecimento artístico do mundo? Pode fazê-lo exatamente porque está no nível de alimentar nossos sentimentos e educá-los. Se repudiássemos sem motivo a arte do passado, nos tomaríamos ao mesmo tempo espiritualmente mais pobres.

Hoje se nota que há uma tendência a desenvolver a idéia de que a arte tem como objetivo somente a inspiração de certos estados de ânimo e, de modo algum, o conhecimento da realidade. A conclusão que se deduz é: com que tipo de sentimentos pode contaminar-se a arte da nobreza ou da burguesia? Isto é radicalmente falso. O significado da arte como meio de conhecimento – também para a massa do povo e em particular para ela – não é em nada inferior ao seu significado “sentimental”. A antiga poesia épica, a fábula, o canto e o conto tradicional, o ritmo popular forneceram um conhecimento em forma gráfica, iluminaram o passado, generalizaram a experiência, alargaram o horizonte e apenas em conexão com tudo isso e graças a estas conexões, é possível “sintonizar o aparelho receptor”. Isto vale para toda a literatura em geral, não somente para a poesia épica, mas também para a lírica. Vale para a pintura e escultura. A única exceção, numa certa medida, é a música, cujo efeito é potente, mas unilateral. Bem, também a música se baseia num conhecimento particular da natureza, seu próprio som e ritmo. Mas aqui o conhecimento é ocultado tão profundamente, os frutos das aspirações da natureza são a tal ponto refratários em relação aos nervos de uma pessoa, que a música age como uma “revelação” auto-suficiente. Tentativas de aproximar todas as formas de arte à música considerada como arte de “contaminação” têm sido executadas freqüentemente e têm sempre implicado numa desvalorização na arte da função da inteligência em favor de um amorfo modo de sentir; neste sentido foram e são reacionárias… Ainda pior, naturalmente, aquelas obras de arte que não fornecem nenhum conhecimento gráfico nem “contaminação” artística, mas em compensação avançam pretensões exorbitantes. No nosso país estão estampadas não poucas obras deste tipo e, acima de tudo, não nos manuais
das escolas de arte, mas em muitos milhares de exemplares…

A cultura é um fenômeno social. Por isso o idioma, como meio de comunicação entre os homens, é seu instrumento mais precioso. A cultura lingüística é a condição mais importante para o desenvolvimento de todos os setores da cultura, em particular da ciência e da arte. Como a técnica que não se contenta com os velhos instrumentos de medida, mas sempre cria novos, micrômetros, voltímetros e assim por diante, esforçando-se para atingir uma precisão sempre maior, assim também no que respeita ao idioma, a capacidade de escolher a palavra apropriada e de combiná-la adequadamente, é necessário um trabalho atento para poder atingir o mais alto grau de precisão, de clareza e vivacidade. A base deste trabalho deve ser a luta contra o analfabetismo e o semi-analfabetismo. A fase seguinte será a apropriação da literatura clássica russa.
Sim, a cultura é o instrumento principal da opressão de classe. Mas também a cultura, e apenas ela, pode tornar-se um instrumento da emancipação socialista.

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Notas:

1 – Famusov, personagem de teatro, pequeno-burguês pedante, imbuído de uma pseudo-sabedoria. (Nota
do Tradutor)

2 – Esta questão não tem, naturalmente, nada em comum com o culto de um freudismo como indulgência
erótica ou manifestação de obscenidade. Semelhantes provocações nada têm a ver com a ciência e apenas
exprimem um estado de ânimo decadentista: o centro de gravidade se desloca do cérebro para uma
medula espinal. (Nota do Autor)