Burguesia, pequena burguesia e proletariado

Leon Trotsky

Toda análise séria da política deve partir da correlação entre as três classes: a burguesia, a pequena burguesia (entre esta – o campesinato) e o proletariado.

A grande burguesia, economicamente poderosa, representa uma insignificante minoria da nação. Para consolidar sua dominação, vê-se obrigada a manter determinadas relações com a pequena burguesia e, através desta, com o proletariado.

Para a compreensão da dialética dessas relações, é necessário distinguir três etapas históricas: o desabrochar do desenvolvimento capitalista, quando a burguesia precisava, para resolver suas tarefas, de métodos revolucionários; o período de florescimento e madureza do regime capitalista, quando a burguesia emprestava à sua dominação formas democráticas, ordenadas, pacíficas, conservadoras; e, finalmente, a época da decadência do capitalismo, quando a burguesia se vê obrigada a usar de métodos de guerra civil contra o proletariado, para salvaguardar seu direito a exploração.

Os programas políticos que caracterizam essas três etapas – o jacobinismo, a democracia reformista (incluída aí a social-democracia) e o fascismo – são, em essência, programas de correntes pequeno-burguesas. Basta esta circunstância para mostrar a significação decisiva, prodigiosa, verdadeira, que a autodeterminação política das massas pequeno-burguesas do povo tem para o destino de toda a sociedade burguesa!

Entretanto, as relações entre a burguesia e seu fundamental esteio social, a pequena burguesia, não residem, de modo algum, na confiança recíproca baseada numa cooperação pacífica. Como massa, a pequena burguesia é uma classe explorada e prejudicada. Coloca-se diante da grande burguesia com inveja e, muitas vezes, com ódio. A burguesia, por seu turno, enquanto se serve do apoio da pequena burguesia, desconfia desta, pois teme sempre, com toda a razão, que ela esteja disposta a transgredir os limites que lhe são impostos de cima.

Enquanto aplainavam e limpavam o caminho para o desenvolvimento burguês, entravam os jacobinos, a cada passo, em choque com a burguesia. Serviram-na lutando irreconciliavelmente contra ela. Depois de ter preenchido seu limitado papel histórico, os jacobinos caíram, pois a dominação do capital já estava assegurada.

Através de uma série de etapas, consolidava a burguesia seu poder, sob a forma da democracia parlamentar. De novo, nem pacífica, nem voluntariamente. A burguesia manifestou seu medo de morte do sufrágio universal. Afinal, graças à combinação das medidas de violência com as concessões, da miséria com as reformas, conseguiu submeter, nos quadros da democracia formal, não só a antiga pequena burguesia, como também, em medida considerável, o proletariado, para o que serviu da nova pequena burguesia – a burocracia operária. Em agosto de 1914, a burguesia imperialista, por meio da democracia parlamentar, pôde arrastar à guerra dezenas de milhões de operários e camponeses.

É exatamente com a guerra que se torna clara a decadência do capitalismo e sobretudo de suas formas de dominação democráticas. Já não se trata, agora, de novas reformas e escolas, mas de cortar e suprimir as antigas. O domínio político da burguesia cai assim, em contradição, não só com as instituições da democracia proletária (sindicatos e partidos políticos), como também com a democracia parlamentar, em cujos quadros se formaram as organizações operárias. Daí a campanha contra o “marxismo”, de um lado, e contra o parlamentarismo democrático, de outro.

Da mesma forma que os vértices da burguesia liberal, em seu tempo, foram incapazes, por sua própria força, de se desembaraçar da monarquia, do feudalismo e da Igreja, assim também os magnatas do capital financeiro, sozinhos, são incapazes de liquidar o proletariado com sua própria força. Precisam do auxílio da pequena burguesia, que, para isso, precisa ser açulada, posta de pé, mobilizada e armada. No entanto, esse método tem seus inconvenientes. Ao passo que se serve do fascismo, a burguesia o teme. Pilsudski foi obrigado, em maio de 1926, a salvar a sociedade burguesa por um golpe de Estado dado contra os partidos tradicionais da burguesia polaca. A coisa foi tão longe, que o líder oficial do Partido Comunista da Polônia, Warski, que passou de Rosa Luxemburgo, não para Lenin, mas para Stalin, considerou o golpe de Pilsudski como um caminho que conduz à ‘”ditadura revolucionária democrática”, e convocou os operários a sustentar Pilsudski. Na sessão da comissão polaca do comitê executivo do Comintern, em 2 de julho de 1926, dizia o autor destas linhas a propósito dos acontecimentos da Polônia:

“Vista em conjunto, a insurreição de Pilsudski é a maneira ‘plebéia’, pequeno-burguesa, de resolver as tarefas inadiáveis da sociedade burguesa decadente e em decomposição. Já existe, ali, uma aproximação direta com o fascismo italiano.
Ambas as correntes têm, indubitavelmente, os mesmos rasgos: suas tropas de assalto são recrutadas, sobretudo, na pequena burguesia. Pilsudski, como Mussolini, trabalha com métodos extraparlamentares, de violência aberta, de guerra civil; ambos se esforçaram, não para derrubar, mas para salvar a sociedade burguesa. Ao mesmo tempo que puseram a pequena burguesia de pé, trataram, após a conquista do poder, de se unir abertamente à grande burguesia. Impõe-se agora, involuntariamente, uma generalização histórica, que nos faz lembrar a apreciação de Marx sobre o jacobinismo, como a maneira plebéia de ajuste de contas com os inimigos feudais da burguesia. Foi o que sucedeu na época de ascensão da burguesia. Pode-se dizer, agora, na época de declínio da sociedade burguesa, que a burguesia necessita novamente de uma maneira, ‘plebéia’, de solucionar suas tarefas, já não mais progressivas, mas inteiramente reacionárias. Neste sentido, o fascismo se torna uma caricatura reacionária do jacobinismo..
A burguesia em declínio é incapaz de se manter no poder pelos meios e métodos do Estado parlamentar que criou. Recorre ao fascismo corno arma de autodefesa, pelo menos nos momentos mais críticos. A burguesia, entretanto, não gosta da maneira ‘plebéia’ de resolver seus problemas. Manteve-se sempre em posição hostil ao jacobinismo, que lavou com sangue o caminho para o desenvolvimento da sociedade burguesa. Os fascistas estão imensamente mais próximos da burguesia em decadência do que os jacobinos da burguesia ascendente. Entretanto, a burguesia, prudentemente, não vê também com bons olhos a maneira fascista de resolver seus problemas, pois os abalos, embora provocados no interesse da sociedade burguesa, são ao mesmo tempo perigosos. Dai a contradição entre o fascismo e os partidos burgueses tradicionais. A grande burguesia gosta tanto do fascismo quanto um homem com o maxilar dorido pode gostar de arrancar um dente. Os círculos mais fortes da sociedade burguesa acompanham a contragosto a obra do dentista Pilsudski, mas, por fim, sujeitam-se ao inevitável, embora com ameaças, regateios e transações. Assim, o ídolo de ontem da pequena burguesia se transforma em polícia do capital”.

A essa tentativa de assinalar o lugar histórico do fascismo como subtitulo político da social-democracia foi oposta a teoria do “social-fascismo”. A princípio, podia passar por uma tolice inofensiva, embora, arrogante e barulhenta. Os acontecimentos posteriores mostraram a perniciosa influência que a teoria stalinista exerceu sobre todo o desenvolvimento da Internacional Comunista¹

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Da função histórica do jacobinismo, da democracia e do fascismo resultará, então, que a pequena burguesia esteja condenada a continuar como instrumento nas mãos do capital até ao fim de seus dias? Se assim fosse, a ditadura do proletariado seria impossível numa série de países, onde a pequena burguesia forma a maioria da nação, e extremamente dificultada em outros países, onde a pequena burguesia representa uma minoria considerável. Felizmente, as coisas não se apresentam assim. Já ficou demonstrado, pela experiência da Comuna de Paris, nos limites de uma cidade, e, depois dela, pela experiência da Revolução de Outubro, numa escala incomparavelmente maior de tempo e de espaço, que a aliança entre a grande e a pequena burguesia não é indissolúvel. Como a pequena burguesia é incapaz de uma política independente (e eis por que a “ditadura democrática”, pequeno-burguesa, em particular, é irrealizável), só lhe resta escolher entre a burguesia e o proletariado.

Na época de ascensão e florescimento do capitalismo, a pequena burguesia, apesar de fortes acessos de descontentamento, quase sempre caminhou obediente na esteira do capitalismo. Mas, nas condições de decomposição capitalista e da situação econômica sem saída, a pequena burguesia tenta, procura, experimenta livrar-se dos grilhões dos velhos senhores e dirigentes da sociedade. Ela é perfeitamente capaz de prender seu destino ao do proletariado. Para isso, basta uma coisa: a pequena burguesia ter confiança na capacidade de o proletariado dar à sociedade um novo rumo. O proletariado só pode inspirar-lhe essa confiança por sua própria força, pela segurança de suas ações, pela destreza de sua ofensiva contra o inimigo, pelo êxito de sua política revolucionária.

Mas, ai!, se o partido revolucionário não se mostra à altura da situação! A luta cotidiana agrava a instabilidade da sociedade burguesa. As perturbações políticas e as greves pioram a situação econômica do país. A pequena burguesia estaria disposta a conformar-se passageiramente com as crescentes privações, se chegasse, pela experiência, à convicção de que o proletariado é capaz de guiá-la por uma nova senda. Mas continue o partido revolucionário a mostrar-se, sempre, apesar da intensificação ininterrupta da luta de classes, incapaz de reunir em torno de si a classe operária, vacile, desoriente-se, contradiga-se: então a pequena burguesia perde a paciência e principia a ver nos trabalhadores revolucionários os autores de sua própria miséria. Todos os partidos burgueses, inclusive também a social-democracia, impelem seus pensamentos nesta direção. E é quando a crise começa a adquirir uma intensidade insuportável que entra em cena um partido especial, cujo objetivo é trazer a pequena burguesia a um ponto candente e a dirigir seu ódio e seu desespero contra o proletariado. Esta função histórica desempenha hoje na Alemanha o nacional-socialismo, uma ampla, corrente, cuja ideologia se compõe de todas as exalações pútridas da sociedade burguesa em decomposição.

A principal responsabilidade política pelo crescimento do fascismo cabe naturalmente à social-democracia. Desde a guerra imperialista que o trabalho desse partido consiste em expulsar da consciência do proletariado a idéia de uma política autônoma, inspirando-lhe a crença na eternidade do capitalismo e obrigando-o a ajoelhar-se diante da burguesia decadente. A pequena burguesia só pode seguir o operário, se vê neste o novo senhor. A social-democracia ensina o trabalhador a ser lacaio. A um lacaio, a pequena burguesia não seguirá. A política do reformismo tira ao proletariado a possibilidade de guiar as massas plebéias da pequena burguesia, e já por isso as transforma em carne de canhão do fascismo.

A questão, porém, para nós, politicamente, não fica absolutamente decidida com a responsabilidade da social-democracia. Já desde o começo da guerra que denunciamos esse partido como agência da burguesia imperialista no seio do proletariado. Desta nova orientação dos marxistas revolucionários nasceu a III Internacional, cuja tarefa consistia em unificar o proletariado sob a bandeira da Revolução e assegurar-lhe, assim, a possibilidade de exercer uma influência dirigente sobre as massas oprimidas da pequena burguesia na cidade e no campo.

O período de pós-guerra foi, na Alemanha, mais do que em qualquer outra parte, um tempo de desespero econômico e de guerra civil. Condições, tanto internas como internacionais, empurravam o país, imperiosamente, para o caminho do socialismo. Cada passo da social-democracia punha a nu sua degradação e sua impotência, a essência reacionária de sua política, a venalidade de seus chefes. Que condições, pois, ainda são necessárias para o crescimento do partido comunista? Entretanto, o comunismo Alemão, depois dos primeiros anos de triunfos significativos, entrou numa era de vacilações, de zeguezagues, de oportunismos e aventurismos alternados. A burocracia centrista enfraqueceu sistematicamente a vanguarda proletária, impedindo-a de arrastar a classe atrás de si. Arrebatou, com isso, ao proletariado em conjunto a possibilidade de arrastas as massas oprimidas da pequena burguesia. A responsabilidade direta e imediado pelo crescimento do fascismo é a burocracia stalinista quem a carrega perante a vanguarda proletária.

Reproduzido de Trotski, L. Burguesia, pequena burguesia e proletariado. In: Revolução e contra-revolução. Tradução e apresentação de Mário Pedrosa. Rio de Janeiro, Ed. Laemmert, 1968. p 288-93

¹Enquanto a imprensa stalinista escondia ao Partido e ao Comintern o discurso citado acima, empreendia contra ele uma de suas campanhas habituais. Manuilski escreveu que eu tinha ousado “identificar” is fascistas aos jacobinos, que entretanto são os nossos antepassados revolucionários. Este final é mais ou menos certo. Infelizmente, apresentam estes antepassados não poucos descendentes incapazes de fazer trabalhar o cérebro. Um eco da antiga discussão pode-se encontrar, também, nas últimas produções de Munzemberg contra o “Trotskismo”. Mas deixemos isso de lado.

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