Rebeliões escravas

Neste mês de Novembro, mês da Consciência Negra, em que o farsante Bolsonaro acaba de ser eleito; em que um membro do MBL diz que a Ku Klux Klan é de esquerda, após esta declarar apoio ao Bolsonaro; em que a proposta do “Escola Sem Partido” está em discussão no Congresso Nacional, é importante resgatarmos acontecimentos, lutas, resistências e etc do nosso Brasil. Mais particularmente é importante mostrarmos exatamente a história que tentam falsear, maquiar e impedir de ser ensinada e discutida, pois, como diz o autor do texto abaixo, os poderosos “só admitem relatos de eventos que lhes garanta uma imagem positiva e, com isso, a continuidade de seu poder.

E o que melhor exemplifica isso é que ainda são criados novos obstáculos para barrar a lei 10.639/03, que completa 15 anos em 2018, lei esta que torna obrigatório o ensino de história e cultura afro-brasileira e da África nas escolas e universidades e que nunca foi implementada com sucesso.

Este texto de Genésio de Arruda, cofundador do Movimento Negro Unificado e do Conselho da Comunidade Negra foi publicado na revista Trabalhadores, publicação mensal do Fundo de Assistência à Cultura, com edição tendo como tema Escravos. Tal publicação é de 1989, mas ganha importância, pois, como ele explica, tem intenção de mostrar uma parte da história que nos é escondida, uma outra versão da visão passada sobre o “negro que só aparece na história como escravo submisso. O que é um absurdo histórico que raia o grotesco de tão irreal.”

JRdoPT de Florianópolis.

REBELIÕES ESCRAVAS

A história oficial do Brasil contém tantas distorções, foi tão manipulada, que certos fatos se mostram grotescos à luz de uma pesquisa séria. A começar pela “descoberta” do Brasil no século XVI, passando pela Independência, Guerra do Paraguai, Abolição da Escravatura, até a “revolução” de 1964, as distorções são flagrantes. Do golpe de 1964 existem muitas e lúcidas testemunhas ainda vivas que podem contar o que foi esse movimento. Quanto à “descoberta” do Brasil, por exemplo, basta observar que quando Cabral aqui chegou encontrou milhares ou milhões de habitantes. Ele pode ter descoberto os brasileiros, não o Brasil. Se antes os primitivos brasileiros tivessem ido à Lisboa ou ao Porto, teriam eles descoberto Portugal?

Por que, então, são falseados os fatos históricos? Acontece que são os poderosos que contam histórias, e como tal só admitem relatos de eventos que lhes garanta uma imagem positiva e, com isso, a continuidade de seu poder e de privilégios inerentes a ele. Desse modo, quando os poderosos contam os fatos, são obrigados a escamoteá-los a fim de manterem a imagem de infalíveis. Além disso, eles o fazem para manter as pessoas desinformadas, pois sabemos que o homem mal informado ou desinformado é alienado e submisso, enquanto a informação conscientiza, e o homem consciente luta.

No Brasil, as maiores vítimas das distorções históricas foram e ainda são os negros. Trazidos ao Brasil há 455 anos, os negros fizeram de tudo pelo nosso país. Desde a literatura à culinária, do quilombo de Palmares à Guerra do Paraguai, da música clássica aos ritmos populares, das glórias esportivas ao apogeu industrial, em tudo existe um pouco de Mãe-África. E, no entanto, o negro só aparece na história como escravo submisso. O que é um absurdo histórico que raia o grotesco de tão irreal. A criança negra na escola sente-se constrangida quando chega o 13 de maio e a professora fala apenas dos escravos. Às vezes, alguma referência é feita ao negro, mas quase sempre de forma indecente e mentirosa. Uma das mentiras que ainda persiste sobre o negro é sua passividade. Contra tais mentiras, vamos fazer aqui um relato breve de alguns fatos ocorridos no século XIX na Bahia, principalmente a Revolta dos Malês. Gostaríamos de falar dos quilombos, da Balaiada, da Cabanagem e mesmo da epopéia de Canudos, entre outras importantes manifestações políticas dos negros, mas o espaço é curto.

Liberdade, a palavra de ordem

A histórica Revolta dos Malês, ocorrida em janeiro de 1835, não foi um fato isolado, mas, pelo contrário, foi culminância de uma série de levantes e motins organizados por negros indignados contra o sistema vigente, registrados em Salvador e arredores durante todo o século XIX. Nesta época, a capital baiana era uma das maiores cidades da América do Sul. São Salvador, como era então chamada, tinha, de acordo com o censo de 1807, 51.112 habitantes, assim distribuídos: 25.502 pretos (50%), 14.260 brancos (28%) e 11.350 mulatos (22%). A maioria da população da cidade era portanto constituída de negros (72%), que viviam em péssimas condições. Segundo as estimativas referentes a 1835, pouco mais de 40% dos habitantes de Salvador eram escravos; os demais negros, livres, sobreviviam com grandes dificuldades, fazendo biscates ou eram artesãos. Segundo João José Reis, um estudioso das revoltas negras em Salvador, havia mesmo pobres livres que viviam em situação pior do que os escravos. No pólo oposto, os latifundiários, senhores de escravos, e os ricos comerciantes portugueses dominavam a economia e a política com muita usura e estreiteza, impondo à plebe árduas condições de vida. Essa situação era propícia aos acontecimentos baianos do século XIX.

A primeira revolta de que se tem notícia, no entanto, ocorreu ainda no século XVIII, mais precisamente em 1798. Neste ano, um grupo de jovens negros conspiram contra o rei de Portugal. Conclamam o povo a rebelar-se, afixando nos muros e nas paredes da cidade cartazes em que o rei é tachado de inimigo do povo e até de ladrão. A palavra de ordem é “Liberdade”. A influência da Revolução Francesa, ocorrida nove anos antes é evidente.

Os conjurados baianos esperam receber apoio do povo e dos soldados, mas foram delatados, e seu líderes, Luiz Gonzaga das Virgens, é preso em 24 de agosto. Seus amigos articulam-se para resgatá-lo da prisão e prosseguir o movimento, mas são novamente traídos: os intelectuais brancos, que os apoiavam, abandonam-nos, ficando apenas os negros. A policia caça e prende centenas de pessoas, que são julgados com todo rigor em novembro de 1799. Luiz Gonzaga das Virgens, Manuel Faustino dos Santos Lira, Lucas Dantas e João de Deus Nascimento são condenados à forca. Seus corpos são esquartejados e expostos em praça pública. Damião Pinheiro, também condenado à morte, acabou degredado à África. O escravo Luiz da França Pires, que fugiu, foi condenado à revelia, podendo ser morto por qualquer pessoa que o encontrasse. Cosme Damião, um outro escravo, foi banido para África. Açoites públicos e outras pesadas penas sofreram outros negros envolvidos nesse episódio conhecido como Inconfidência Baiana.

Planos de 1807 e 1809

Já no século XIX, o primeiro levante negro ocorreu em 1807, ou melhor, foi abortado nessa data por João Saldanha da Gama, o Conde da Ponte, então presidente (como era chamado o governador) da Bahia. O plano dos rebeldes – delatado por um escravo fiel – previa o seguinte: em 28 de maio, durante a procissão de Corpus Christi, eles incendiariam a Alfândega e algumas igrejas, após o que, aproveitando-se do tumulto provocado, tomariam um navio e fugiriam. Mas o conde, que era um racista ferrenho, soube da trama seis dias antes, e armou um forte esquema policial, prendendo muitos negros, inclusive mulheres. Julgados com rigor, dois negros da etnia haussá, líderes do movimento, foram enforcados; outros foram açoitados ou degradados, além de outras penas. O presidente Saldanha da Gama tomou uma série de medidas, entre as quais a restrição da circulação dos negros.

Apesar das severas punições a que estavam sujeitos, os negros não se intimidaram, e já em dezembro de 1808 preparavam nova ação libertadora. A rebelião eclode em 05 de janeiro de 1808, no Recôncavo Baiano, quando 300 quilombolas atacam a vila de Nazaré das Farinhas, matando senhores de engenho e feitores. Libertam escravos e incendeiam engenhos, saqueiam ainda o comércio e matam os brancos que encontram ou surram-nos. Acossados pelas tropas policiais, lutam bravamente até serem derrotados. Muitos fogem para as matas, outros suicidam-se. A polícia prende 95 rebeldes, 83 homens e 12 mulheres. Esse motim foi liderado por muçulmanos da confraria Ogboni.

Unidade pela fé

Apesar das medidas rigorosas tomadas pelas autoridades da Bahia, a negrada continua a se reunir e a confabular nos inúmeros quilombos existentes na periferia de Salvador. Muitos desses quilombos eram camuflados de casas religiosas – os famosos candomblés da Bahia. Assim é que eclodem novos incidentes em 1810, 1811 e 1812, além de inúmeras fugas, até que em fevereiro de 1813 explode o mais sério levante escravo antes da Revolta dos Malês.

Nessa última data, cerca de 600 negros, a maioria de seguidores da religião muçulmanos (ou islâmica), invadem engenhos nos subúrbios de Salvador. Matam feitores e familiares, libertam os escravos e destroem engenhos. Enfrentam as tropas do governo e somente após renhida e sangrenta batalha são desalojados. Os negros são massacrados, mas muitos conseguem fugir para as matas e chegam a Sergipe, onde, algum tempo depois, surgem focos de rebeldia a eles atribuídos. De centenas de presos, já em março, 34 são condenados à morte, outros ao açoite público (de 150 a 600 lambadas) e demais penas como degredo e trabalhos forçados. O rigor com que foram tratados os sediciosos evidencia bem o estado de espírito dos brancos ante as proporções do motim. O então presidente Conde D’Arcos, ao que parece menos racista que seu precedente, teve que baixar ordens restringindo novamente os “direitos” dos negros, livres ou escravos. Em 1813, até os tradicionais fogos de artifício foram proibidos nas festas juninas.

Esse levante foi liderado por negros nagôs e haussás, contando com a participação de outras etnias como jejês. Essa heterogeneidade de composição étnica era um fato novo nesse tipo de ocorrência, o que impressionou bastante os racistas. Isto porque os escravistas tinham como estratégia de dominação estimular as rivalidades étnicas, muito fortes entre as várias nações em que se dividiam os cativos no Brasil. Para essa unidade entre diversas nações foram fundamentais as lideranças muçulmanas. De fato, os chefes rebeldes dessa e de outras sublevações dos escravos baianos eram sempre negros islamizados, seguidores da religião fundada por Maomé. Muitos deles sabiam ler e escrever; alguns eram até professores. Unidos pela fé islâmica, esses negros conseguiram formar poderosas alianças, superando suas diferenças étnicas e de condição em vista de um objetivo comum. Assim, biscateiros, pescadores, artesãos e trabalhadores em geral, urbanos ou rurais, libertos ou escravizados, todos uniram-se na luta contra o inimigo comum, o racismo escravizador.

Reis negros na luta

Em 28 de fevereiro de 1814, escravos de uma armação pesqueira levantam-se em Itapuã. Incendeiam a armação, de propriedade de Manoel Ignácio da Cunha, e mais três estabelecimentos congêneres libertando seus companheiros escravizados. Durante as ações, matam feitores, seus familiares e também escravos fiéis, no total de mais de 14 pessoas. Os rebeldes já são mais de 250, e agora dirigem-se ao Recôncavo, mas são interceptados por tropas do governo às margens do rio Joanes. A refrega é violenta e, após horas de sangrento combate, os trabalhadores escravos são derrotados: no chão jazem 58 negros mortos, muitos estão feridos; outros se afogaram tentando atravessar o rio. Dos presos, quatro são enforcados, 23 vão cumprir pena nas colônias portuguesas, muitos são açoitados, outros morrem na prisão, vítimas de maus tratos.

Um novo levante ocorre em 12 de fevereiro de 1816. Fevereiro é mês de festa na Bahia, e o motim eclode em Santo Amaro e em São Francisco, logo após uma dessas festas religiosas. O conflito começa, ao que parece, de modo espontâneo: escravos iniciam um quebra-quebra, depois incendeiam engenhos e matam vários brancos , levando o pavor aos proprietários. O movimento cessa após quatro dias de grande confusão.

Essa ação “inesperada” deixa os senhores de escravos em sobressalto. Formam-se “esquadrões de vigilância” para caçar e maltratar os negros suspeitos, mesmo os livres. Além disso, em 27 de Fevereiro, reunidos em São Francisco, os proprietários propõem medidas drásticas contra os negros , entre elas: matar qualquer negro suspeito; proibir que qualquer negro se sente na frente de branco; açoitar com 150 chibatadas, na presença de familiares, os negros que fossem pilhadas andando sem autorização; e promover a imigração de 100 famílias brancas para Salvador.

Tais medidas, levadas pelo comandante militar da Bahia, o brigadeiro Felisberto Caldeira Brandt Pontes, também proprietário de engenhos, não são aceitas pelo presidente Conde D’Arcos, que as considera despropositadas. Caldeira Brandt vai então ao Rio de Janeiro, onde obtém do governo real o aval às suas pretensões. Mas, de volta à Bahia, é preso pelo Conde D’Arcos, embora por poucos dias.

Um novo levante ocorreu em 1817, mas não há maiores registros a respeito. Também não há notícias de revoltas negras entre 1818 e maio de 1822. Nesta data, porém, 250 negros do engenho Boa Vista, em Itapiraca, rebelam-se, sendo rapidamente controlados. Em setembro, registra-se também um conflito na vila São Mateus, envolvendo negros contra brancos e mulatos. A milícia local sufoca o motim, prendendo os africanos, um dos quais pretendiam ser “rei do Brasil”. No mesmo ano, durante a chamada “Guerra da Independência”, um grupo de negros, provavelmente insuflados por seus senhores, atacou as tropas de Labatuf. O grupo foi prontamente rechaçado pelo general francês, que fuzilaria de modo sumário 50 negros.

Em 1826, comandados por seu “rei”,levantam-se os escravos do engenho de Cachoeira. Reprimidos pela milícia, resistem com bravura. A “rainha” luta até a morte, e o rei só se deixa prender depois de gravemente ferido. Ainda no mesmo ano, em 16 de dezembro, quilombos do Urubu, um dos vários quilombos existentes nos arredores de Salvador, atacam sítios e casas da região. Matam ou surram os brancos que encontram, saqueiam e, por fim, alojam-se em um sítio no Cabinda. Alguns capitães-do-mato tentam enfrentá-los na manhã seguinte, mas sofrendo três baixas, põem-se em fuga. Uma milícia de 37 homens fortemente armados vem combater os revoltosos, que são finalmente dominados após encarniçada contenda.

Nessa revolta, havia cerca de 50 quilombolas entre homens e mulheres, a maioria de nagôs, grandes guerreiros. Entre eles destacou-se uma jovem quilombola de nome Zeferina, que durante o combate incentivava os companheiros com gritos de guerra, causando admiração até em soldados inimigos. Presa, Zeferina declarou que o levante deveria acontecer na véspera do Natal, quando iria receber a adesão dos escravos de Salvador. Mas um incidente, ocorrido quando os revoltosos se abasteciam num sítio ao quilombo, precipitou as ações. A polícia apurou que as reuniões eram feitas em um terreiro de candomblé, dirigido por um mulato chamado Antonio. Interrogado, este alegou desconhecer o caráter das reuniões em seu terreiro, mas foi condenado, juntamente com Zeferina, a trabalhos forçados. Os demais envolvidos foram rigorosamente punidos, mesmo porque o presidente da província era Manoel Ignácio da Cunha, senhor de muitos escravos.

Em pleno centro de Salvador

Eram oito ou nove horas da noite, de 22 de março de 1827. A escravaria do engenho de Vitória, às margens do rio Mambucaba, em Cachoeira, rebela-se matando o feitos e seu irmão. O dono do engenho era o rico empresário Pedro Rodrigues Bandeira, que tinha mais três engenhos em Cachoeira. Segundo testemunhas, o grande alarido provocado pelos negros dava a impressão de que todos os cativos de Pedro Bandeira estavam levantados, já que os estabelecimentos eram vizinhos. Esse motim não teve maiores consequências, sendo controlada pela milícia local e pelas tropas da cavalaria. No mesmo ano, em setembro, também houve um “corre-corre” em Abranches, mas a falta de mais detalhes faz crer que foi mais uma entre tantas ações quilombolas procurando se abastecer.

Já o ano de 1828 foi “quente” para os escravistas. Em 12 de março, em Itapuã, trabalhadores escravizados das armações pesqueiras unem-se a seus colegas de engenhos vizinhos e destroem os estabelecimentos. Partem então para Pirajá, incendiando no caminho canaviais e saqueando casas de brancos. Perto de Engomadeira, porém, são interceptados por tropas do governo. O encontro, como de costume, é acirrado. Os amotinados, embora precariamente armados com paus, facas e alguma arma de baixo calibre, levavam dentro de si a ferrenha disposição de se libertarem, o que lhes acrescentava uma força incomum. Nesse embate, as tropas precisaram do reforço da milícia para subjugar os negros insurretos. Morreram mais de vinte; muitos fugiram embrenhando-se na mata; alguns foram presos, mas apenas um nagô foi condenado a açoite público. Teófilo, escravo de José Pedro Alckamin, embora não tivesse participado do movimento, foi também açoitado a pedido desse senhor “para servir de exemplo”.

Nesse ano ainda houve “corre-corre” de escravos em Santo Amaro e, entre 17 e 21 de abril, em Cachoeira. Em junho, ocorreu um levante de escravos na fazenda Santana, em Ilhéus. Esta grande fazenda-engenho tinha já uma longa história de levantes, um dos quais havia sido bastante significativo.

Em 1829, os escravos dos três engenhos do coronel de milícia José Maria de Pena e Mello, em Cotegipe, insurgem-se em 16 de outubro. Matam três pessoas e incendeiam um engenho, antes de serem dominados pela milícia, ajudada pela guarda armada do proprietário. Novos conflitos de negros ocorrem também em novembro.

No ano seguinte, na manhã de 10 de abril, um grupo de 20 negros assalta três lojas de ferragens, apoderando-se de espadas e ferramentas. Dirigem-se então ao “depósito de escravos” do traficante Miguel de Almeida, libertando-os. Os sediciosos matam 18 escravos que não aderem ao movimento. Depois atacam um posto policial, onde encontram resistência, e acabam cercados por reforços que chegam. No local são mortos 50, e outros, gravemente feridos.

Essa rebelião em pleno centro de Salvador, surpreendeu e assustou a burguesia baiana, que exigiu mais rigor das autoridades contra os negros. O presidente da província, Luiz Paulo de Araújo baixou então novas ordens restringindo ainda mais a circulação dos negros, que foram obrigados a recolher-se às 21 horas. Todos os escravos suspeitos eram presos, sendo libertadores somente após provarem sua inocência e, mesmo assim, para serem vendidos fora da Bahia. Vigiados e controlados cotidianamente, os trabalhadores negros teriam de usar de muita astúcia e perspicácia para desfechar novo e decisivo golpe contra o sórdido sistema.

Uma rede de conspiração

A Bahia, no século XIX, ostentava a maior concentração de escravos no Brasil, havendo ali negros de várias nações africanas, sendo algumas delas rivais empedernidas: minas, calabares, tapas (ounupes), mundubis, jejês, bornus, fulanis etc. e os célebres muçulmanos nagôs e haussás, que os brancos chamavam de malês.

Os maometanos, por sua própria condição religiosa, sabiam ler e escrever, pois uma das suas obrigações era converter os pagãos, e, para isso, era preciso conhecer o Alcorão,o livro sagrado do islamismo. Muitos desses negros,quando chegaram ao Brasil, já traziam da África a experiência das lutas religiosas. Aqui, realizaram no início algumas ações isoladas, restritas apenas a seu meio, mas logo perceberam que a solução para seus problemas era conscientizar o maior número possível de negros por meio da religião. O objetivo era conduzí-los à revolta tendo como elo de união o Islã, o que já havia sido ensaiado no grande golpe de 1813.

Com experiência adquirida desde 1807, os negros se dedicavam mais tempo à preparação das ações. Enquanto os alufás (mestres) catequizavam os militantes, outros ativistas cuidam de aspectos estratégicos do levante. Para isso, mantinham reuniões em vários locais secretos de Salvador. Um deles se situava na Barra, bairro da Vitória, nos fundos da casa de um britânico chamado Abraão. Construída pelos próprios militantes, a sede era coordenada pelos escravos Ramil, James, Diogo, Cornélio e Tomaz, este último um mestre de Alcorão. Ali reuniam-se com escravos da cidade de Itaparica e de Santo Amaro, com lideranças dos quilombos ou com os negros trabalhadores do mar e dos saveiros.

A casa de Belchior da Silva Cunha, um negro liberto, era outra das mais ativas células, reunindo negros do Recôncavo e quilombolas do subúrbio, entre os quais o mestre Luiz Sanin, um importante alufá, Ojou, Ivá, Mamolin e outros. No Beco dos Tanoeiros, sob comando do mestre Elesbão Dandará, também se conspirava. Elesbão morava no Gravatá, e havia alugado uma tenda no centro da cidade para reuniões com o pessoal que ele doutrinava na fé maometana. Como os demais alufás, sabia árabe. Outro importante líder era Pacífico Licutã, em cuja casa reuniam-se as lideranças da rebelião. Quando a revolta eclodiu, ele se encontrava preso, mas dada a sua influência entre os rebeldes foi também considerado culpado.

As reuniões ocorriam até mesmo na porta do Convento das Mercês, onde os escravos Francisco e Agostinho acertavam com seus colegas da vizinhança a sua parte na insurreição. Desse modo, embora tivessem seus movimentos controlados, os abnegados guerrilheiros achavam meios de se articularem. Havia muitos “aparelhos” negros espalhados por Salvador, até mesmo na casa de um inglês chamado Malbor Russel. Por isso, muitos ingleses residentes em Salvador ficaram sob suspeita, mas sem fundamento.

A Revolta dos Malês

A trama urdida pelos bravos muçulmanos era muito boa, quase perfeita,e traria sérias consequências políticas ao país se fosse executa com sucesso. Infelizmente, uma negra, talvez temerosa pela sorte de “seu nego”, um dos envolvidos, denunciou a conspiração à polícia. Imediatamente, as autoridades reforçaram todos os pontos estratégicos da cidade e, na noite de 24 de janeiro de 1835, realizaram uma diligência à loja de Calafete. Pilhados de surpresa, os conjurados ali reunidos responderam a tiros. Foi o primeiro embate.

Obrigados a precipitar a rebelião, os intrépidos guerrilheiros saíram à luta atabalhoadamente. Mesmo assim, de várias partes surgiram grupos de combatentes que, de improviso, tentaram tomar alguns pontos da cidade. Investiram contra o forte São Pedro, onde foram repelidos, o mesmo acontecendo no forte da Artilharia. Um grupo liderado por Calafete quis invadir a cadeira para libertar os colegas presos, entre eles, Licutã, mas não teve a melhor sorte, pois as tropas reforçadas eram muito numerosas e tinham maior poder de fogo. A luta prosseguiu durante toda a noite, ouvindo-se ainda tiros na manhã de 25 de janeiro.

Os negros foram massacrados, morrendo centenas deles. Outros tantos ficaram gravemente feridos. A repressão foi mais violenta do que nunca. Durante dias a polícia vasculhou as casas dos negros, prendendo mais de 300 pessoas, que seguindo a praxe, foram castigados com muito rigor. Em 13 de maio de 1835, foram condenados à forca os libertos Jorge da Cunha Barbosa e José Francisco Gonçalves. As autoridades baianas, no entanto, não encontraram quem se prestasse a servir como carrasco mesmo com uma boa remuneração, e tiveram de fuzilar os condenados em 14 de maio.

Outros insurretos foram condenados a açoites públicos: Licutã, Luiz Sanin, Tomaz e os escravos Luiz, Higino e Antônio receberam entre 200 a 600 chibatadas cada um. Muitos, milhares mesmo, foram banidos para a África. A vida desses deportados é o tema de um recente livro da pesquisadora Manuela Carneiro da Cunha.

A revolta dos Malês acabou repercutindo de forma sintomática no mundo escravista internacional. Não tanto pelo que foi, mas principalmente pelo que poderia ter sido, não fosse o capricho do mero acaso.

Genésio de Arruda

DEIXE UMA RESPOSTA

Please enter your comment!
Por favor, digite seu nome